• Por Humberto

Entrevista com Drummond, parte 4

Quarta e última parte da versão integral da entrevista feita por Humberto Werneck com Carlos Drummond de Andrade, no apartamento do poeta, na rua Conselheiro Lafaiete, 60, Rio de Janeiro, para a revista IstoÉ, no dia 11 de abril de 1985.

 

HW – O senhor, de qualquer forma, nunca foi muito de convívio literário – ou estou engando?

CDA – Não. O que marcou a minha geração foi que nós mudamos a literatura, um valor absoluto. Nossas conversas eram conversas de amigo. A minha com Pedro Nava, com Abgar, com o Rodrigo Melo Franco de Andrade, com Afonso Arinos foram conversas da vida em geral. Anedotas, piadas, muita brincadeira, muita coisa, comentário certo sobre o assunto certo, e pouca literatura. Nós não fizemos vida literária. Eu tive a fase de café, sentado, em Belo Horizonte, na mocidade, porque à noite nós nos reuníamos, o Emilio Moura, Pedro Nava, João Alphonsus, Cyro dos Anjos, e cada um de nós lia, tirava do bolso... Naquele tempo a gente ia tomar café de paletó, paletó e gravata. Então tirava do bolso a coisa e lia pros outros. Mas essa leitura e esse comentário do texto lido, não era a tônica da reunião. A tônica era uma conversa meio maluca, de rapazes assim, boêmios, que queriam brincar com a vida, não tinham muita seriedade.

HW – O senhor era um pouco moleque, ao que consta.

CDA – Fui muito. Até hoje ainda me considero um pouco. Tenho poucas oportunidades de manifestar esse meu lado...

HW – Mas quando se manifesta, é de que forma?

CDA – É muito raro, não é?, não tenho oportunidades, meus próprios amigos, hoje, já não são mais... Eu tenho muita vontade de fazer molecagem... Houve uma época em que o Fernando Sabino e eu gostávamos de passar trote nos outros.

HW – Por exemplo?

CDA – Não seria compreendido hoje. É difícil. Seria forçado...

HW – Fernando Sabino...

CDA – Fernando Sabino ainda conserva o espírito de moleque. Durante muito tempo... Uma outra geração, que não é a minha... Nós gostávamos muito de passar trote nos outros. O Fernando Sabino e eu passávamos trote aí no... um escritor. Ele ficava indignado da vida. Não vou dizer o nome pra ele não ficar [indignado].

HW – Era o [Otto Maria] Carpeaux, não?

CDA – Não, não é o Carpeaux. O Carpeaux era meu amigo.

HW – Mas tem uma história de um trote seu...

CDA – No Carpeaux, não. Sempre respeitei muito o Carpeaux. O Fernando e eu passamos trote, assim, chamando as pessoas pra conversar com gente que não estava presente, bobagens... Mas eu... É muito engraçado. Mas pra fazer essas molecagens é preciso saber até ter um pouco de disposição física. Eu não posso dar uma cambalhota, dar um pulo, um salto, a junta do corpo começa a doer.

HW – O senhor fazia isso?

CDA – Fazia. Tinha uma certa elasticidade de macaco.

HW – Isto até quando?

CDA – Eu não posso precisar bem, não. A minha mocidade é um negócio muito longínquo. Agora, o mais gostoso para mim é quando... Tenho cara de velho, raramente gente moça aparece... Mas quando tem uma senhora de família que tem uma neta, de 2, 3 anos, aí eu gosto de brincar com ela, deitar no chão, tentar conquistá-la. Eu ainda consigo alguma coisa. Gosto muito. Eu contei isso na TV Educativa. Tem uma menina que é muito amiga da filha do porteiro. Ela mora no edifício ao lado. Outro dia eu saí, ela chegou perto de mim, disse: “eu quero dizer uma coisa pro senhor...”. Eu fiquei quieto. – “Mundo, mundo vasto mundo/ Se eu me chamasse Raimundo/ era uma rima, não solução/ Mundo, mundo, vasto mundo/ mais vasto é meu coração”. Eu perguntei: o que é isso, minha filha? Ela respondeu: “É do senhor”. Quer dizer, naturalmente o pai ou a mãe dela é que mandou ela decorar. Quer dizer, ela já tinha me fixado. Eles são amigos da filha do porteiro, a Carla, uma menina muito bonitinha, muito simpática, e ela é muito ligada à Carla. Então ela acabou sabendo que eu fazia versos. A família dela deve ter dito – “olha, diz isso pra ele”. Mas ela falou isso com tanta espontaneidade, com tanta graça, que... é a glória: acho que isso é que é a glória.

HW – Mais do que a Academia...

CDA – É... É uma pessoa, um ser, uma de 7 anos, que fixou a ideia de que eu sou um poeta. E que, pra me agradar, pra me dar prazer, fez aquilo. Sem nenhum constrangimento, coisa da idade. “Tchau” – e foi embora, não ficou pra conversar sobre...

HW – É verdade que o senhor e Pedro Nava, certa vez, nos anos 70, puseram fogo numa casa em Belo Horizonte?

CDA – Ah, o Pedro Nava conta isso nas memórias dele.

HW – Ele fala em família Bevilacqua, mas é Vivacqua, não?

CDA – É, a família Vivacqua. Foi uma coisa muito idiota, muito boba da nossa parte. A família Vivacqua é uma família muito distinta. Uma gente que contribuiu pra renovar a vida social em Belo Horizonte. Não havia ligação entre rapazes e moças. Os rapazes ficavam aqui e as moças aqui. Havia um footing, andar a pé, passear a pé, na alameda principal da Praça da Liberdade. Os rapazes ficavam assim à esquerda, as moças desse lado. Então a gente olhava, piscava os olhos pra elas, ria, fazia um sinalzinho, mas os irmãos dela não deixava, a gente conversar com elas não. Nem os pais, nem as mães. Era muito fechado. Num ambiente assim, tão contraído, as irmãs Vivacqua chegaram, eram várias moças, quatro ou cinco, chegaram e abriram um salão pra rapazes, para os literatos, davam reuniões literárias, então era novidade e a gente começou a ter mais facilidade de conversar com as moças. Porque pra conversar, antes, era preciso ser amigo do irmão da moça, pedir ao irmão da moça pra apresentar a moça, controlado por ele; o irmão da moça usava bengala, se ele achasse que a gente estava dançando muito encostado na moça – naquele tempo era só encostar, não é que nem agora, essa coisa de doido – você corria o risco de levar uma bengalada. Não era brincadeira, não. Então essas moças renovaram Belo Horizonte. E num dia de estupidez, de doença mental, nós resolvemos cometer aquilo que André Gide chamava de “ato gratuito”. O ato gratuito do Gide era um sujeito que, viajando de trem pra Roma, encontrou um desconhecido na plataforma e resolveu jogá-lo pra fora do trem, sem conhecer, sem saber, sem nenhuma motivação. Completamente gratuito. O nosso crime gratuito era o incêndio. Queimar uma casa, sem motivo nenhum. E logo uma casa de pessoas de quem nós gostávamos, a família Vivacqua. Mas logo nós vimos que aquilo era uma loucura completa e, quando a chama começou a subir... A casa de Belo Horizonte, naqueles anos 20, não era fechada. Não havia assaltante, não havia nada. Tinha-se a maior confiança, não se cerrava o portão. Às vezes se esquecia de botar cadeado. Então nós abrimos o portão, vimos que não tinha resistência e começamos o incêndio. Quando nós vimos que estava pegando, demos a volta, entramos pela entrada principal da casa, tocamos a campainha e avisamos a família. Saímos de lá como heróis. Mas a versão que correu na época é que nós havíamos feito aquele incêndio pra poder ver as moças de camisola. Naquele tempo as moças usavam camisola até aqui. Não usavam pijama, não. É bobagem mesmo. Então nós falamos à dona da casa: “Olha, nós passamos por aqui, já era tarde da noite, vimos sair fumaça da sua casa, e entramos aqui pra apagar o fogo”. Nós saímos de lá como heróis. Tínhamos prestado um grande benefício à casa. Mas um guarda-civil – naquele tempo tinha guarda-civil, que corresponde hoje ao PM – escutou os gritos de “fogo”, “socorro”, etc., um guarda que ficava na Praça da Liberdade – a casa dos Vivacqua era a dois passos da Praça da Liberdade –, tinha chegado com esse barulho; quando nós saímos de lá, já como heróis, ele coçou a cabeça e disse: “Eu não sei, não, mas pra mim foram esses rapazes aí que tocaram fogo. Eu vejo eles fazerem muita agitação aqui na Praça da Liberdade”. O guarda comunicou ao delegado; por sorte, o delegado era casado com parenta minha, o delegado olhou com uma cara feroz, nos assustou muito, mas não fez nada.

HW – Tendo vivido essa época em que um rapaz, para ver uma moça de camisola, precisava pôr fogo na casa dela, como o senhor vê a liberdade que existe hoje entre jovens dos dois sexos?

CDA – Ah, eu acho uma delícia. Eu lamento muito ter sido moço naquela época. Pode haver excesso, pode haver incompreensão. Mas acho que por parte das moças uma certa facilidade em ceder a essas liberdades. Acho que elas devem se precaver um pouco mais. Porque o rapaz, em geral, é mais imaturo. E elas não podem confiar muito no bom senso do rapaz. Eu acho a vida muito fácil, hoje. Taí o filhinho de papai. Filhinho que tem motocicleta, filhinho que tem casa de campo em Petrópolis ou tem casa de praia à beira-mar, em Cabo Frio. Esse menino é um pouco desatinado. Não se pode confiar muito nele. Mas o rapaz de classe média em geral, eu acho que ele pode ter uma boa relação amorosa com a moça, pode chegar a ter uma relação amorosa profunda, sem compromisso maior, mas com mais dignidade. Não sou contra isso, não. Acho até que o casamento feito na minha época era um casamento muito perigoso. Porque as pessoas casavam sem conhecimento. O rapaz tinha conhecimento sexual, a moça não tinha. E mesmo com o conhecimento sexual que tinha o rapaz, ele não tinha da moça. Aí, então, surgiam muitas complicações. Muita gente frustrada por falta dessa iniciação. Então, agora eu acho que a iniciação sexual é inteiramente válida.

HW – Da moça também?

CDA – Eu acho inteiramente válida. Apenas deve ser feita com cuidado, com atenção, com muito respeito. De modo que não degenere em facilidades, e até em complicações maiores, que é a gravidez, ou doença venérea. O perigo para a moça é infinitamente maior do que para o rapaz. O rapaz, o máximo que ele pode fazer é dar cobertura, é dar condições de criação para a criança. Mas isso tudo fica dependendo das condições dele, e às vezes até da família, porque às vezes o rapaz é muito independente, mas na hora em que ele assume uma responsabilidade dessa, ele fica filhinho de papai. Ele passa a bola pros pais. Que não querem saber daquilo, porque os pais de hoje... eles não querem chateação, querem viver a vida deles, não querem amolação nenhuma. E têm uma certa razão: a liberdade que o jovem adquiriu hoje, eles conquistaram, como também devem ter responsabilidade. Não pode haver direitos sem obrigação. Da mesma maneira que eles não querem depender dos pais, eles também devem se impor um código de obrigações.

HW – A liberdade da juventude, então, não o escandaliza?

CDA – Não, nada me escandaliza. Tudo vem da natureza humana. Tudo.

HW – E o homossexualismo?

CDA – Tudo vem da natureza humana. Tudo que parece antinatural é natural. Se uma pessoa gerada, um ser humano, se ela praticou experiência, se ela revelou um desvio, esse desvio é natural. É desvio, é um problema de ordem médica, que pode ser tratado ou não, pode ser remediado ou não, conforme condições peculiares do indivíduo. Não é aquilo que antigamente se chamava pecado. Eu acho que é uma consciência que as pessoas adquiriram das coisas da vida. Hoje, mudou muito a perspectiva de julgamento. Mas eu acho que a imagem do homossexualismo tem todo um folclore que eu acho meio desagradável. Transexualismo, bissexualismo, cultivar a experiência como se fosse uma nova fonte de conhecimento vital. Acho tudo isso muito desagradável. Se a pessoa tem, realmente, e manifesta esse instinto, essa tendência, e se ela se realiza, eu acho que ela se desafoga, liberta-se de um sofrimento, que muitas vezes chegou até ao suicídio. Agora, isso não deve ser proclamado e erigido como a glória. É uma pobre deficiência. Por mais que as façam essas experiências, a relação carnal, mental, amorosa e passional homem-mulher é ideal, é a mais perfeita do mundo, não tem substitutivo não. É aquela coisa natural, é a coisa que a natureza criou. Se ela criou outras formas de relacionamento, essas formas não são fundamentais, são formas marginais, que muitas vezes constituem um grande sofrimento. A verdade é esta: é tão bom ver um homem e uma mulher se amando, não há nada mais bonito no mundo, meu Deus! Você não concorda comigo? Pra que? Eu me lembro hoje de um slogan da minha mocidade, de água mineral, que eu acho muito bom: “Basta de experiências, beba Caxambu”. Bebam Caxambu, bebam água mineral de verdade. Não estou fazendo propaganda da Caxambu, nem de água mineral, nem de água nenhuma, é que há um traçado humano. E é tão bom ir pela estrada real, não?

 

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