- Por Humberto
Entrevista com Drummond, parte 3
Terceira parte da versão integral da entrevista feita por Humberto Werneck com Carlos Drummond de Andrade, no apartamento do poeta, na rua Conselheiro Lafaiete, 60, Rio de Janeiro, para a revista IstoÉ, no dia 11 de abril de 1985.
CDA – Agora, o que eu acho é que há leitura e leitura. O que eu gosto muito, o que eu gostaria que as pessoas aprendessem a gostar, é do prazer da leitura, o prazer do texto, como diz aquele escritor francês [Roland Barthes] é a satisfação. Quando eu... outro dia eu recebi um boletim de um centro editorial de Portugal com uns trechos de Eça de Queirós sobre o prazer da leitura e sobre esta reflexão: quem é que lembra quem foi o ministro da Guerra, do governo D. Pedro, em 1830? Ninguém se lembra. Quem foi o presidente da República? Ninguém se lembra. Agora, quem foi o escritor? Foi Victor Hugo, foi Balzac. Quer dizer, o que sobra é o artista, é o escritor, não é o político, o rico, não é o poderoso. É aquela pessoa, às vezes pobre, até, sem estímulo pra viver, sem apoio econômico, mas que deixou alguma coisa escrita, ou alguma coisa musicada, ou alguma coisa pintada, que atravessa o tempo. Você não pode imaginar a delícia com que li esse trecho de Eça de Queiroz, o prazer de ver a prosa dele. Ele é elegante, variável, agradável, a gente lê e fica assim, enlevado por isso. Raramente encontra-se agora um escritor dessa natureza.
HW – O senhor tem três netos. Eles são leitores do avô?
CDA – Eu não faço força pra eles lerem, não, porque acho que não devo me impor como escritor. Parece que eles estão me descobrindo, estão achando certos interesses. O que mora aqui perto é mais ligado a mim, naturalmente.
HW – Quem é ele?
CDA – Pedro. Ele é artista. Faz pintura, faz desenho.
HW – O senhor já é bisavô?
CDA – Não. Nenhum deles quis me dar bisneto. No que eles agem muito bem. Para que aumentar a população do mundo, que já está superpovoado? Eu não sinto a menor vontade de ter bisneto. Respeito muito a independência deles. Façam o que eles quiserem.
HW – Até poucos anos atrás o senhor era uma pessoa arredia, não dava entrevistas. Hoje, recebe estranhos, aparece na televisão. Como se deu essa metamorfose? Eu acho que foi na morte de Vinicius de Moraes. Pelo menos, foi o momento em que o senhor saiu um pouco do seu casulo. O que foi que houve?
CDA – É o seguinte. De 1930 a 1934, durante quatro anos, eu me vi trabalhando no gabinete do secretário do Interior de Minas, que era o Gustavo Capanema, de porta aberta, atendendo a todo mundo. Portanto, uma pessoa de comunicação fácil. Profissionalmente eu era obrigado a me comunicar. E de 1934 a 1945, portanto durante onze anos, eu me vi de porta aberta no gabinete do ministro Capanema [da Educação e Saúde Pública], aqui no Rio de Janeiro. Era uma vida bastante pesada, porque eu tinha a responsabilidade da parte burocrática, parte administrativa, lidar com processos de toda natureza – o ministério abrangia educação, saúde e até o abastecimento de água. A água do Rio de Janeiro, que era muito pouca, era administrada por nós. Você não imagina o sofrimento que nós tínhamos, quando faltava água até na casa do ministro. Então nos telefonavam da casa do ministro Oswaldo Aranha – “Ministro Capanema, nós não temos água aqui.” Então o coitado do ministro Capanema: “Eu também não tenho.” Era um inferno. E foi ele, Capanema, quem deu a segunda adutora de Ribeirão das Lages. Era um tempo de muita atividade pública. Eu tinha até de ter uma fatiota complicada, um smoking, uma casaca para presidir solenidades, fazer discursos de formatura, representar o ministro. Era uma vida bastante chata. Pelo menos para o meu gosto. Havia lá, por exemplo, uns auxiliares do Capanema que gostavam da vida social. Um é o embaixador Hugo Gouthier, que continua frequentando a vida mundana, a vida social. Eu não, eu sempre fui uma pessoa tímida, fechada, não por hostilidade ou por má vontade ou desprezo, mas pela dificuldade da comunicação. Entrar, por exemplo, em um salão já cheio... Eu gostava sempre de chegar mais cedo, pela dificuldade de não saber, se encontrava o salão já cheio, se dava a mão a cada um, se fazia assim com a cabeça, ou como me comportar. Essas coisas sempre me atrapalhavam muito. Mas, então, terminado esse segundo período de vida por assim dizer pública, eu achei que já tinha direito a uma vida privada. Ficar quieto no meu canto, ler os livros que eu gostava, conversando com os meus amigos, telefonando pros meus amigos, curtindo os meus amigos. Muitos deles já foram emborra. Rodrigo Melo Franco, Gastão Cruls, Manuel Bandeira, Mário de Andrade. Então eu não era mais obrigado a ir a coquetel, não era obrigado a ir a lançamento de livros, a cerimônia de formatura. Com isso, fiquei com a fama de fechado. Na realidade, eu não era aberto, mas também não era fechado – as pessoas que me procuravam, eu atendia. Um traço que mostra que esse meu fechamento era relativo é o seguinte: eu trabalho com o telefone ao lado da minha mesa. Noventa por cento das vezes, sou eu que atendo. Ora, uma pessoa que quer fugir da comunicação não tem o telefone ao lado, é o secretário quem fala. Eu nunca tive secretário, eu sempre fui secretário dos outros. Depois, com o tempo, publicando livros, a indústria do livro tornando-se mais desenvolvida, exigindo a penetração do mercado do livro através da propaganda, através da divulgação, através da entrevista, das noites de autógrafos, me forçou a me tornar um pouco mais público, porque eu tinha que colaborar com o meu editor. Eu não posso obrigar o meu editor a vender o meu livro se eu fujo do leitor como se fugisse do diabo. Daí, então, esse contato. Mesmo assim, noites de autógrafo eu já não faço mais, porque é um problema de resistência física. Eu não tenho mais preparo físico para noite de autógrafos. É muito pesado pra mim. Tem uma duração ilimitada e exige muito esforço. Mas qualquer pessoa que me peça autógrafos, eu dou. Ou deixa na livraria, ou vem aqui em casa, eu assino sempre. Entrevista pra jornal de estudante eu dou sempre. Prefiro dar por escrito, porque a maioria dos entrevistadores são crianças, são jovens, adolescentes. Tenho muita pena – gente que mora, por exemplo, lá no Méier, vir aqui em comissão de três ou quatro alunos me entrevistar em Copacabana, me perguntar coisas que não têm maior importância... Então eu prefiro que escrevam, mandem pelo correio, que eu respondo. Porque assim eu vejo o grau de adiantamento da pessoa que me pergunta, e posso adequar a resposta a esse gabarito. E ganho tempo também, porque aí eu escrevo na hora que for mais cômodo pra mim. Na realidade não houve, por assim dizer, uma mudança de comportamento. Não mesmo.
HW – O senhor esperava ser um best-seller aos 82 anos?
CDA – Best-seller é relativo.
HW – Bem, Corpo já vendeu mais de 40 mil exemplares em poucos meses.
CDA – Realmente é muito. Best-seller dos pobres.
HW – Mas o senhor contava com essa ou não?
CDA – Não. Eu conto com a capacidade da Editora Record, que é realmente primorosa.
HW – Seus direitos autorais são hoje algo substancial?
CDA – Para o Brasil, é respeitável, sim.
HW – Dá pra viver disso?
CDA – Não, não dá pra viver. Acho que o único escritor brasileiro que vive do que escreve é Jorge Amado. Os demais têm sempre uma outra atividade. Ou atividade auxiliar, ou uma atividade preponderante. Somente a literatura, acho que não dá.
HW – O senhor costuma ler o que se escreve a seu respeito? Por exemplo, essas teses universitárias?
CDA – É obrigação da gente ler.
HW – Nenhum prazer?
CDA – É mais obrigação do que prazer, porque a tese é trabalhada assim tão tecnicamente que muitas vezes escapa à minha compreensão. Mas se uma pessoa passou meses e meses labutando, estudando as minhas coisas, meditando sobre aquilo, refletindo, eu acho que o normal é que eu dê atenção a ela e leia aquele texto. Não posso é discordar de uma tese. Acho que, não estando num âmbito universitário, não sendo examinador, eu não tenho o direito de discordar.
HW – A seu ver, quais são as questões fundamentais em sua obra? O que que o senhor quis dizer de mais fundamental?
CDA – Não sei, não sei. Eu acho que tenho muita dificuldade pra recuar, pra sair de mim mesmo, e me observar como pessoa. É uma coisa que não está em mim, não tenho capacidade para isso.
HW – Escrever, para o senhor, é uma coisa fácil?
CDA – É uma coisa fácil e uma coisa difícil. Um amigo meu gosta muito de citar uma frase de um escritor francês, Joubert, amigo de Chateaubriand; era mais um amador de literatura do que um escritor, tanto que não deixou livros, deixou pensamentos. Então ele dizia que escrever é uma facilidade nata e uma dificuldade adquirida. Quero dizer, eu tenho o dom de escrever, mas, na hora de escrever, quanto mais você escreve mais rigoroso você fica, mais exigente com as palavras. Você não pode usar um sinônimo que seja eficiente. Tem que usar aquela palavra justa. E se você já usou aquela palavra duas, três vezes, não quer repeti-la. Você quer exatamente o sinônimo mais adequado. Ao contrário da língua francesa, em que se usa e abusa da repetição, sem o menor escrúpulo. Isso não faz parte da proibição, não atrapalha. Nós, brasileiros, somos mais exigentes. Nós exigimos uma renovação constante do vocabulário. Então eu confesso que escrever é uma coisa que faço com muita rapidez, mas que eu corrijo muito. Torno a corrigir várias vezes até encontrar a expressão justa. E há coisas que eu não sei, que eu não consigo escrever.
HW – O senhor se lembraria de um poema que lhe custou mais trabalho?
CDA – De um modo geral, é uma coisa material. Alguns deram mais trabalho porque eram mais longos, porque não feitos num só dia. Por exemplo, o poema que eu fiz dedicado a Carlitos [Canto ao homem do povo Charlie Chaplin] me custou, digamos, umas duas semanas de elaboração. Não em hora marcada, porque eu não consigo trabalhar em hora marcada. É na hora que eu estou assim, disposto. Então eu fui obrigado... Eu não consegui fazer aquilo num dia só. Tive que fazer durante vários dias. E procurar me concentrar, para sentir novamente aquela emoção que, sem a qual, eu não escrevo nada. Não costumo escrever sem emoção. Podem achar que a minha poesia é demasiado fácil, demasiado assim, lacrimogênia; eu produzo emoção, eu quero comover, mas a realidade é que eu não sei fazer poesia pensada, não tenho capacidade pra isso.
HW – E o poema que fluiu mais naturalmente?
CDA – Eu não guardo na memória, não. Pra mim é importante fazer poema na hora em que ele pinta na minha cabeça. Naquela hora, aquele é o mais importante de todos o que eu já fiz, porque é aquele que eu tenho que fazer. Depois de feito, é o esfriamento. Agora, há uma segunda fase – quando eu posso, quando não é uma encomenda que eu tenho que entregar dentro de uma semana, ou quinze dias – em que eu sempre guardo, não publico não. Guardo. Releio três ou quatro meses depois. Então já releio aquilo criticamente, não mais como uma pessoa fez o poema, e sim como uma pessoa que está analisando o poema. Aí eu modifico novamente.
HW – Ao completar 80 anos, em 1983, Pedro Nava disse que a sabedoria do velho é um farol que ilumina pra trás. O senhor acha que é isso mesmo?
CDA – É triste, mas é verdade. O Nava tem uma inspiração profunda sobre a vida e sobre a natureza da velhice. Ele viveu a velhice com intensidade. Admirável. Ele viveu a velhice como moço. Desde que desencadeou aquele processo das memórias – fulgurante –, ele não teve uma vida de velho velho, ele teve uma vida de velho moço, gigante.
HW – O senhor é um escritor refratário à Academia Brasileira de Letras. Por outro lado, se reúne todo sábado na casa de Plínio Doyle, numa confraria de escritores [o Sabadoyle]. Não seria uma forma de fazer academia?
CDA – Não, não é academia, não.
HW – Mas tem até um chazinho...
CDA – Lá não tem eleição. E uma coisa que faz falta: não tem jeton. Nós já provocamos o Plínio Doyle, “Vá, dá um jeton pra nós, estamos aqui há tantos anos, já”. Ultimamente, ele está sendo muito generoso comigo. Sempre me telefona perguntando se eu não quero o carro dele pra ir até lá. É que ele mora pertinho, aqui em Ipanema, não precisa, não utilizo, não. É muita experiência, sabe, porque o que caracteriza a Academia de Letras não é o chá das quintas-feiras. É a sessão. Sessão em que, por exemplo, um acadêmico tem uma gripe. Ele cura a gripe, para felicidade dele e da Academia. Então, quando ele volta, a primeira vez depois da gripe, um colega se levanta e diz: “Senhor Presidente, proponho um voto de congratulação pelo nosso companheiro fulano de tal, que escapou de legítima gripe”. Isso ocorre também no Conselho Federal de Cultura, no qual tomam parte conselheiros vindos até do norte, vindos de outros estados do Brasil onde vivem. É natural que deixam suas comodidades. Muitas vezes o assunto de um conselho e da Academia de Letras é a viagem de um acadêmico à Europa e coisas desse gênero. Eu pergunto a você: será que isso vale a pena como programa de vida? Eu não faço mal da Academia como instituição, e digo mais também: eu respeito a Academia, que já fez muitas coisas boas na vida, na história literária, as publicações que a Academia deixa, quando era presidente Afrânio Peixoto, são muito boas, livros clássicos brasileiros, as poesias completas do Gregório de Matos, depois foi feito... o Jorge Amado, uma edição melhor. Mas com os dados de que dispunha na ocasião, a obra de Gregório de Matos é muito boa. Então, eles têm feito alguma coisa. Agora. É que eu não tenho mesmo espírito acadêmico. Mas tenho lá amigos, os mais queridos. Cyro dos Anjos, Afonso Arinos, José Montello, claro, são meus amigos queridos e gosto muito deles. Mas eu não os vejo como acadêmicos, vejo-os como meus amigos.