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O poeta e seus bichos

[Publicado em O Estado de S. Paulo, 02/04/2019]

 

            O amor de Carlos Drummond de Andrade pelos animais não era um amor qualquer. Foi posto à prova. Para começar, resistiu a uma queda de cavalo em Itabira, quando menino, pequeno desastre que descreverá, já maduro, em carta à sobrinha Flávia, como tendo acontecido, para mal de seus pecados, “diante de janelas e sacadas cheias de gente”, num episódio do qual saiu “mais encabulado do que machucado”. Com o vexame adicional de que se tratava de cavalo manso – tão pacato quanto outro pocotó que, no Pontal, a fazenda da família, lhe mordeu as costas. “Passear na fazenda”, contou Drummond numa entrevista, era um “castigo”: “As quedas de cavalo induziram-me a desconfiar dos encantos da vida ao ar livre”.

Mais que cicatrizes, das duas ocorrências lhe ficaram sequelas poéticas, uma delas no sarcasmo de “Coro familiar”: “O cavalo mordeu o menino?/ Por acaso o menino ainda mama?/ Vamos rir, vamos rir do cretino,/ e se chora, que chore na cama”. Ou no tom de profecia em “Os bens e o sangue”: “Pedimos pelo menino porque já se ouve planger o sino/ do tombo que ele levar quando monte a cavalo./ – Vai cair do cavalo/ de cabeça no valo.” Em matéria de montaria, nada que se possa equiparar àquela outra, figurada, que também se desdobrou em versos, no fecho de “O quarto em desordem” – o soneto com que, tendo derrapado “na curva perigosa dos cinquenta”, o poeta festejou os deleitosos solavancos de um novo amor: “E esse cavalo solto pela cama/ a passear o peito de quem ama”.

No prosaísmo do dia a dia, Carlos Drummond de Andrade não se limitou a participar de iniciativas em defesa dos animais, quase sempre em companhia da amiga Lya Cavalcanti, conforme se contou aqui na semana passada. Seu engajamento nada tinha de platônico. Ele militou, por exemplo, na seção carioca da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, a SUIPA, da qual foi a certa altura conselheiro. “Sou candidato ao Conselho Consultivo”, escreveu ele na véspera de eleições ali, em 1957 – e debulhou um compromisso de campanha: “Prometo aconselhar sempre com sabedoria, prudência e justiça, depois de ouvir, é claro, meus queridos conselheiros particulares: Puck (um cãozinho velho) e Inácio (um gatinho novo)”.

No dia, porém, 13 de junho, em que aquela crônica foi publicada no Correio da Manhã, o conselheiro Puck já não vivia: na manhã de 5, o poeta e sua mulher, Dolores, o tinham levado a uma clínica veterinária na avenida Atlântica, envolto num lençol, para que, caso perdido, fosse piedosamente sacrificado. “Com 15 anos de vida, seu estado era lastimável, e não havia esperança de recuperação”, anotou Drummond em seu diário. “Uma injeção – e mais nada. Deixamos o corpo na clínica, e trago para casa, com o sentimento de perda, o de ingratidão”. Do veterano Puck – seria um samoieda, um spitz ou simplesmente um plebeu, fruto de emaranhada mestiçagem? – haveriam de ficar, além de lembranças de longa duração, algumas fotografias, numa das quais ele aparece aconchegado no abraço de seu dono. E como este era dotado também para as artes visuais, de Puck ficou ainda o delicado retrato a crayon que acompanha este texto.

O mesmo diário registrou também, entre os bichos de estimação do poeta, um canário que seu tio Elias deu à sobrinha neta Maria Julieta. “Passarinho sem sorte”: um dia o vento derrubou a gaiola e lhe quebrou uma perna – problema que seria agravado quando o poeta teve a má ideia de promover uma confraternização do canário com “um periquito estúpido”, daí resultando ferimento ainda mais sério. Restou a Drummond esperar que a filha voltasse do colégio e sepultasse o passarinho nos fundos da casa, embalado numa caixinha de sabonete. Mesmo em Copacabana, havia quintais, naquele tempo.

A família morava ainda no 81 da Rua Joaquim Nabuco, no Posto 6, em outubro de 1959, quando lá chegou Inácio, gato amarelo com listras brancas. Por um tempinho dividiu o espaço e o coração dos donos com Puck, que, a ano e meio do fim, o recebeu “com indiferença de senhor maduro”. Ambos já não viviam quando veio Crispim, felino “preto, barriga e pescoço brancos, focinho branco”, permanentemente “disposto à confraternização”. Se o nome lhe foi dado pelo dono, não terá sido escolha casual: Antônio Crispim foi um de seus pseudônimos nos anos em que foi cronista do diário oficial Minas Gerais, até trocar Belo Horizonte pelo Rio, em 1934. “Tenho hoje um grande amigo no escritório”, consignou Drummond em seu diário, e agregou ilustração: “No momento, aos 3 meses e meio de idade, ele me acaricia o queixo.”

         O trono de gato dos Drummond de Andrade teria um derradeiro ocupante, Garrincha. Dele se sabe que em meados de 1961 se transformara em “problema”: “Além de sujar constantemente na sala de estar e outros cômodos, com evidente descontrole nervoso, começou a procurar tensamente uma gata para amar.” Passava o tempo a miar, faminto, para as gatas do vizinho, “sem correspondência com a época do cio” de suas pretendidas.

Para completar, Garrincha contraiu micose braba que ameaçava propagar-se não só para gatos das redondezas como para os bípedes da casa, entre estes um netinho que, vindo de Buenos Aires, onde viviam Maria Julieta e o genro Manolo, passava um tempo com os avós maternos. Drummond foi aconselhado a abandonar Garrincha no Passeio Público ou no Campo de Santana – mas repeliu a alternativa: “Com desfazer-me de um animalzinho que veio novo para nossa casa e que tanto se afeiçoou a mim, fazendo-me tão gentil companhia?” O gato lhe resolveu o problema, desaparecendo de uma vez por todas.

Uma penosa decisão, àquela altura, já estava tomada: “Nunca voltarei a ter nenhum animal em casa.”