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Na caça ao urso

Em outubro de 1986, animado com a publicação do livro Conversas com Vargas Llosa, de meu amigo Ricardo Setti, me deu o estalo: por que não Conversas com Carlos Drummond de Andrade?

Não me parecia um delírio. O poeta, que durante anos dissera “não” aos jornalistas, andava, então, surpreendentemente receptivo e loquaz. Já não merecia o rótulo “urso polar”, que ele, farto de ser assediado por jornalistas, estudantes e escrevinhadores em geral, colara em si mesmo num exasperado “Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz”. Sua inesperada acessibilidade me fazia pensar num verso de outro poema, aquele com que saudou, em 1953, o nascimento do segundo neto, Luis Mauricio: “Repara que há veludo nos ursos”.

Estava, de fato, mudado. Em outubro de 1977, às vésperas dos 75 anos do poeta, eu amargara a frustração de escrever uma reportagem de capa sobre ele para a Veja sem que tivesse conseguido que me recebesse. De nada valeu a intercessão de um cupincha influente como Fernando Sabino. Meu consolo foi um telegrama do “velho aniversariante comovido”.

Durante anos, raríssimos repórteres conseguiram entrevistar Drummond, que só veio a sair da casca no começo dos anos 1980. Às voltas, então, com uma crise de herpes facial, que entre outros inconvenientes não lhe permitia barbear-se, ainda assim Drummond deu as caras a um velório em São João Batista, onde praticamente ofereceu-se aos microfones.

No final de 1980, o poeta semeou inveja num sem-número de jornalistas, a começar por este aqui, quando fez saber a Zuenir Ventura, então diretor da sucursal carioca da Veja, que gostaria de lhe dar uma entrevista. O calejado jornalista chegou a desligar o telefone, achando que era trote. Não era: Drummond em pessoa esperava por ele no escritório da editora de seus livros. Terminada a conversa, o urso em recesso disse sorridente ao Zuenir: “Viu como o bicho não morde?”

 

Liberada a catraca, não encontrei dificuldade para ouvir o poeta, por telefone ou de corpo presente, em mais de uma ocasião, uma delas em maio de 1983, quando o assunto foi sua amizade sexagenária com Pedro Nava, nos 80 anos do grande memorialista.

Voltei ao apartamento da rua Conselheiro Lafaiete em abril de 1985, com a missão de entrevistá-lo para as “páginas vermelhas” da IstoÉ. Num trecho da conversa que não caberia no texto final, levei a ele minha suposição de que a súbita saída do casulo, num momento preciso de 1980, teria a ver com a morte de Vinicius de Moraes.

Fazia sentido. Em mais de uma ocasião Drummond externara sua admiração pelo amigo e companheiro de ofício, por temperamento seu antípoda, que já Vinicius vivera para além da escrita a vocação da poesia. Ao contrário dele, tão contido, deixara-se gastar, gulosa e perdulariamente.

Como era de esperar, Drummond desconversou. Negou que tivesse havido, de sua parte, mudança de comportamento. Seguia sendo, explicou, um homem pouco afeito à badalação literária; apenas tivera de curvar-se ao fato de que, em novos tempos, já não podia negar colaboração a quem o editava. “Eu não posso obrigar meu editor a vender meu livro se fujo do leitor como se fugisse do diabo”, argumentou. Se acreditei? Nem um pouco.

Julguei desimpedido, em todo caso, o caminho para a toca do urso agora aveludado, e foi esperançoso que, no ano seguinte, levei a ele o meu projeto para um livro-entrevista.

A ducha de água gelada (morna, vá lá) não tardou a vir. Em carta manuscrita de 16 de outubro – dez meses menos um dia antes de sua morte, em 17 de agosto de 1987 –, Drummond, para acolchoar o “não”, começou dizendo que havia refletido sobre a minha proposta. (Pois sim...). E argumentou: “Quem sou eu para que se extraia de minha vida e de minhas ideias um livro de conversas?” A crer nele, sua vida fora “rigorosamente banal, sem lances memoráveis”; suas ideias seriam “as de um cético que tentou exerceu atividade política e saiu-se mal da experiência”. Por fim, não se considerava “um teórico da literatura, que pudesse dizer algo de novo sobre a arte de escrever.”

Foi adiante o poeta em seu arrazoado: em três volumes de poesia (a série memorialística Boitempo), um de diário (O Observador no Escritório) e outro de palestras no rádio (Tempo Vida Poesia), julgava ter dito tudo que lhe ocorrera sobre sua infância e adolescência, sua atividade literária e seus “contatos com o próximo”. Sendo assim, concluiu, “não sobrou mais nada a relatar ou confidenciar”. O caso de Vargas Llosa era diferente, o escritor peruano tinha “vida pública intensa e internacional” – ao passo que ele nada mais fora que “um rond-de-cuir com fumaças literárias...” Dito isso, agradeceu-me “a ideia amável, que resultaria num livro frustrado”.

Restou-me voar ao dicionário e ficar sabendo que rond-de-cuir vem a ser um rótulo pejorativo pespegado em outros tempos aos funcionários públicos franceses, que por alguma razão colocavam rodelas de couro no assento de suas cadeiras de trabalho. Hábito tão disseminado que, na última década do século XIX, fez sucesso em Paris o romance Messieurs le ronds-de-cuir, de Georges Courteline, sobre, resumiu alguém, “o despotismo medíocre dos pequenos burocratas, escravos de um regimento absurdo”.

Um rond-de-cuir com fumaças literárias, Carlos Drummond de Andrade? Pequeno burocrata? Não é isso que vai aos poucos descobrindo este cronista, às voltas, de uns tempos para cá, com o desafio de contar em livro a história do nosso poeta maior. O urso já se foi, mas a caça continua.