- Textos
Moleque Drummond
[Publicado em O Estado de S. Paulo, 12/02/2012]
Um moleque, nosso maior poeta, conhecido também por sua mineira discrição e recato? Sim – e mais: confesso e assumido. “Sempre fui, e até hoje me considero um pouco moleque”, me disse Carlos Drummond de Andrade em maio de 1985. Aos 82 anos, tinha ainda “muita vontade de fazer molecagens”, lamentando apenas que àquela altura encontrasse “poucas oportunidades” para manifestar esse talento. “Eu tinha uma elasticidade de macaco”, relembrou. “Pra fazer certas molecagens é preciso ter disposição física – e não posso mais dar uma cambalhota, um pulo, um salto, as juntas começam a doer.” Nem por isso se dava por aposentado: “Ainda consigo alguma coisa...”
Não mereci o espetáculo de uma cambalhota drummondiana ali no tapete do seu apartamento. Mas recolhi histórias, umas conhecidas, outras nem tanto, que ilustram o gosto do poeta pela molecagem. Aqui vão três:
O incendiário
Na pasmaceira de certa madrugada de Belo Horizonte, nos anos 20, o estudante de Farmácia Carlos Drummond de Andrade e o futuro memorialista Pedro Nava, acadêmico de Medicina, resolveram tocar fogo na casa de suas amigas Vivacqua. A ideia era praticar um “ato gratuito” como o imaginado por André Gide, mas para o folclore em torno dos dois a versão que ficou foi uma tentativa de ver as moças fugindo esbaforidas de camisola – o que, na espessa paisagem moral daquele tempo, teria sido um feito. “Uma coisa muito boba, muito idiota”, avaliou o octogenário Drummond. “Queimar a casa de pessoas de quem nós gostávamos... Logo vimos que era uma loucura, e quando as chamas começaram a subir, tocamos a campainha e avisamos a família: ‘Entramos aqui para apagar o fogo’. Saímos como heróis... Mas um guarda-civil tinha escutado os gritos e foi ver o que acontecia. Coçou a cabeça: ‘Sei não, mas pra mim foram esses rapazes – eu vejo eles fazendo muita agitação na Praça da Liberdade...’.” Por sorte, o delegado era casado com uma parenta de Drummond. “Olhou com uma cara feroz, nos assustou muito, mas não fez nada.” Foi “um foguinho à toa, que não queimou nada, só as nossas reputações”, minimizou Nava quando, em 1984, lhe pedi sua versão da história.
O passador de trotes
“Quem diria que o Carlos adora passar trote ao telefone?”, revelou Fernando Sabino em 1977. Sendo ele próprio um moleque, o romancista de O encontro marcado não só participava da brincadeira como entretinha uma disputa para ver qual dos dois “pegava” o outro. Um dia Sabino, sem se identificar, fez chegar um recado ao escritor Otto Maria Carpeaux, com quem Drummond tinha uma relação afetuosa porém eriçada de cerimônias: o poeta precisava falar com ele, urgentemente. Carpeaux telefonou e, ao cabo de uma conversa meio sem assunto, os dois, constrangidos, se deram conta de que tinham sido vítimas de um trote. Certo de ter passado a perna no amigo, Sabino ligou para tripudiar – e levou um pito duríssimo: isso era coisa que se fizesse? Envolver numa molecagem uma pessoa séria e respeitável como Carpeaux, ainda mais usando o nome dele, Drummond? Sabino foi ouvindo e esfriando – até que o gelasse a estocada final e o telefone fosse desligado: não desculpo não, você passou da conta, nunca mais me dirija a palavra! E agora? – pensou Sabino, arrasado com a leviandade que o fizera perder de uma amizade tão essencial. Quando, por fim, decidiu ligar, ouviu uma gargalhada: desta vez te peguei, velhinho!
O alpinista urbano
“Havia um excesso de boa educação no ar de Minas Gerais e os moços precisavam deseducar-se”, escreveu Drummond em Confissões de Minas. Como? Subvertendo a ordem, literária ou não. Embaralhando de madrugada as placas de médicos, dentistas, advogados nas fachadas de residências. Escalando os arcos do recém-inaugurado viaduto de Santa Teresa, quase vinte metros acima de uma linha de trem. “E o Carlos subia sozinho, por puro deleite”, contou Nava. “Uma vez foi surpreendido por um guarda-noturno e recebeu voz de prisão. ‘Então venha me prender aqui em cima’. O guarda considerou o risco: ‘Neste caso, a prisão fica relaxada’.” A peripécia do poeta virou um rito de passagem para sucessivas gerações de jovens escritores em Belo Horizonte. Difícil dizer se a literatura ganhou ou perdeu com o fato de ninguém ter caído do arco do viaduto.