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A morte por amor
Sobre a reportagem na revista IstoÉ que escreveu por ocasião da morte de Carlos Drummond de Andrade, Humberto Werneck relembra: "Eu decidi não assinar, indignado que estava com a direção da revista, que mal-e-mal aceitou dar três páginas e não matéria de capa. Por mim, teria voado para o Rio tão logo tive notícia da morte do poeta, ainda na noite de 17 de agosto. A chefia achou que não era o caso. Para escrever o texto, me vali de colegas da sucursal e de alguns uns telefonemas". Abaixo, o texto integral, publicado na revista no dia 26 de agosto de 1987, pela primeira vez assinado pelo seu autor.
A morte por amor
No último dia 6, quando foi enterrar sua filha única, a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade, morta na véspera de câncer, aos 59 anos, o poeta Carlos Drummond de Andrade não teve forças para subir a escada estreita que leva ao túmulo número 19.099 do cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro. "Dentro de alguns dias", disse então, "meus amigos terão grande trabalho". Duas semanas não se passaram. Ao meio-dia da terça-feira, 18, levado por amigos e pelos três netos, o corpo do maior poeta brasileiro de todos os tempos unia-se àquela que, em seu poema "A mesa", ele chamou de "meu verso melhor ou único". O atestado de óbito informou que o escritor, de 84 anos, morrera, às 20h45m da segunda-feira, na Unidade de Terapia Intensiva da clínica Pró-Cardíaco, no bairro de Botafogo, de insuficiência respiratória subsequente a uma infarto agudo do miocárdio. Sua médica, porém, a cardiologista e geriatra Elizabete Viana de Freitas, que o acompanhava há três anos, preferiu usar linguagem menos técnica: "Carlos Drummond de Andrade", disse, "morreu de amor".
Nenhum diagnóstico seria mais certeiro. Desde a morte da filha o poeta mergulhara numa espessa, irremediável tristeza. "Eu esperava que ela fechasse os meus olhos", queixou-se no cemitério ao filólogo Antonio Houaiss. O escritor Octavio Mello Alvarenga, companheiro de Maria Julieta desde 1983, conta que pai e filha "tinham uma relação meio freudiana". Ambos, segundo Alvarenga, brigavam muito com dona Dolores, com quem o poeta se casou em 1925. "A filha era a sua grande amizade intelectual", garante o genro, "mas a verdade é que Drummond a massacrou como intelectual e escritora", pois "ser filha de um gênio é intolerável".
Na opinião do inconfidente Alvarenga, foi para escapar ao peso formidável da figura paterna que Maria Julieta se casou, aos 21, com um homem vinte anos mais velho, o advogado e escritor argentino Manuel Graña Etcheverry, indo viver em Buenos Aires, onde passou 34 anos. Ele conta, ainda, que durante muito tempo pai e filha mantiveram ritualmente o costume de se escreverem aos sábados, relatando pelo correio as peripécias da semana. "Depois que ela morreu, ele quis rasgar as cartas", diz Alvarenga. "Eu é que o fiz mudar de ideia."
Maria Julieta estava doente havia dois anos, e cada piora sua era um golpe também na saúde do pai, abalada por uma cirurgia de próstata em 1983 e por um cálculo renal em 1985 – e, ainda, pela morte de velhos camaradas como o memorialista Pedro Nava, seu companheiro do grupo modernista que agitou Belo Horizonte nos anos 20. Em meados de novembro sobreveio o primeiro infarto. Em maio, quando Maria Julieta foi internada, o coração de Drummond vacilou novamente. Depois do enterro, conta Octavio Mello Alvarenga, o poeta não saiu mais do apartamento onde vivia, desde 1962, com dona Dolores, na rua Conselheiro Lafaiete, em Copacabana.
Tinha, agora, a companhia dos netos – o advogado Carlos Manuel, 36 anos, o estudante de matemática Luís Maurício, 33, e o artista plástico Pedro Augusto, 27, o único dos três que não vive em Buenos Aires. Embora sentisse dores no peito, Drummond tentou levar vida normal – lia os jornais e não perdia um capítulo das novelas Brega & Chique e O Outro. Nos últimos dias, teria tido o cuidado de transferir suas contas bancárias para o nome de Pedro Augusto. Diante da pilha de cartas, cartões e telegramas de pêsames, comentou que não teria tempo de responder a tudo aquilo.
Entre as manifestações que recebeu, naqueles dias, uma das mais tocantes partiu de um velho amigo de juventude, o senador Afonso Arinos. "Foi um dos momentos mais emocionantes de minha vida", confessou depois Arinos. "Eu e Drummond, mesmo separados pelo telefone, choramos juntos." A última visita, segundo Octavio Mello Alvarenga, foi a do embaixador Antônio Azeredo da Silveira, na segunda-feira, dia 10. Na quarta-feira sentiu dores e a família chamou a doutora Elizabete. Drummond pediu então à médica que lhe receitasse não remédios, mas "um infarto fulminante" – que acabou vindo na madrugada de sábado, quando foi internado no Pró-Cardíaco. Chegou lúcido, conversando com os netos, mas em pouco a situação se agravou, com dificuldades respiratórias, e foi preciso leva-lo para a UTI, de onde não sairia com vida. "Para mim, mesmo médica, foi muito triste vê-lo ali, sofrendo", conta a cardiologista. No início da noite de segunda-feira, estava tudo acabado.
Organizado, detalhista, Drummond se preparara como poucos para a morte. Deixou recomendação para que o enterro se realizasse sem pompa e sem cerimônia religiosa, pois era agnóstico. Foi atendido. Seu desejo era ser cremado, mas, como no Rio não existem crematórios, comprou com folgada antecedência uma sepultura no cemitério de São João Batista, e dela falou em mais de um entrevista, com uma ponta de humor, louvando-lhe a boa localização. No ano passado, poucos meses antes do primeiro infarto, confiou seus arquivos pessoais a um grande amigo, Plínio Doyle, diretor do Arquivo-Museu de Literatura da Casa de Rui Barbosa e criador do famoso "Sabadoyle" – uma espécie de academia de letras informal que desde 1964 se reúne todo sábado, como o nome indica, em seu apartamento em Ipanema, para um lanche e conversas literárias.
Frequentador do Sabadoyle, Drummond passou às mãos do amigo dezesseis gavetas de arquivo contendo poemas inéditos, recortes, originais de todas as suas crônicas publicadas no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, cartas recebidas e enviadas e fotografias – além de copiosas manifestações de uma aptidão menos conhecida do escritor: os desenhos que fazia, geralmente autorretratos e retratos de amigos. "Drummond era um desenhista bastante razoável, com um talento fino e muito bem-humorado", atesta Plínio Doyle, que por enquanto mantém sob sete chaves a papelada do poeta. O trabalho de catalogação desse material, ele informa, tomará um ano e meio, aproximadamente, e só então poderá ser consultado, na Casa de Rui Barbosa.
Entre os textos inéditos certamente repousam os originais de um livro de poemas eróticos, O amor natural, que o escritor, por anos a fio, recusou a diversos editores. Homem reservado, ele temia ser assimilado à onda da literatura pornô, e certa vez, no início da década, explicou com graça por que não divulgava os famosos versos: "Antes, não havia clima; agora, há excesso de clima". É de prever que, com sua morte, o livro possa finalmente sair. Uma coisa é certa: os quarenta volumes de verso e de prosa (fora as antologias, seletas e obras reunidas) assinados por Drummond desde a estreia, em 1930, com Alguma poesia, estão longe de enfeixar toda a sua produção. Há muito mais nas gavetas, e já este ano a editora Record promete lançar pelo menos dois títulos: O avesso das coisas, coletânea de aforismos, e Moça deitada na cama, de crônicas.
Também este ano, o Arquivo Público Mineiro planeja recolocar em circulação as deliciosas crônicas que o jovem Drummond publicou sob pseudônimo ("Antônio Crispim" e "Barba Azul") no diário oficial do governo mineiro, o Minas Gerais (do qual era funcionário), em 1930 e 1931, e que em 1984 tiveram uma tiragem quase confidencial. Não há dúvida, porém, de que o essencial da obra de Drummond, capaz de colocá-lo ombro a ombro com os dois outros gigantes da poesia de língua portuguesa – Luís de Camões e Fernando Pessoa – já veio à luz. Não morrerá tão cedo, se é que vai morrer um dia, a discussão entre os leitores para quem o ápice de sua produção está, por exemplo, nos versos politicamente engajados do livro A rosa do povo, de 1946, na visão mais cética de Claro enigma, de 1951, ou na inesperada renovação formal do poeta sexagenário em Lição de coisas, de 1962. Por cima dessa discussão paira a convicção unânime de que escritor da estatura de Carlos Drummond de Andrade o Brasil, até agora, só teve um – Machado de Assis.
Se alguma dúvida havia quanto ao amor dos brasileiros por seu grande escritor, ela foi varrida na semana passada pela comoção coletiva que atravessou o país. "Morreu o cara que estava mais próximo de compreender o Brasil", lamentava o cartunista Ziraldo, que ilustrou mais de um livro de Drummond. "Ele foi meu mestre", tributou João Cabral de Melo Neto, agora alçado ao posto de maior poeta brasileiro vivo. No velório, choravam humildes passistas da Estação Primeira de Mangueira, a escola que fez de Drummond o tema de seu vitorioso samba-enredo, no último Carnaval. Em Minas Gerais, a cidade de Itabira voltou a experimentar sentimentos contraditórios: o orgulho de ser a terra natal do poeta (ainda está de pé o casarão onde ele morou) e o ressentimento por não ter merecido uma visita sua nos últimos 33 anos. Ainda há, entre a população local, quem tome como ofensa o célebre verso em que Drummond fala de Itabira como sendo "apenas um retrato na parede", ou aquele em que a descreve, sem nomeá-la, como uma "cidadezinha qualquer".
Mulher de um sobrinho do poeta, Carmen Araújo Andrade revela que é comum, entre a juventude itabirana, uma persistente má vontade em relação a ele, pelo fato de ter trocado a terra por Belo Horizonte, na segunda década do século, e depois pelo Rio de Janeiro, onde viveu a partir de 1934 (por alguns meses, em 1926, voltou a viver em Itabira, como professor de português e geografia). "É uma injustiça, um preconceito que vem sendo transmitido nas escolas pelos próprios professores", denuncia Carmen Araújo Andrade.
Mas há, felizmente, um outro lado na relação da cidade com o escritor. Na semana passada, a Fundação Cultural de Itabira foi rebatizada Fundação Carlos Drummond de Andrade. O prefeito decretou luto oficial por três dias, parte do comércio fechou as portas e a programação das emissoras de rádio se recheou de comentários sobre a vida e a obra do escritor. Esfumaram-se, de uma vez por todas, alguns fiapos de que Drummond, quem sabe, um dia acabasse voltando. Essa ansiedade, que varou décadas, desapareceu – para que Itabira pudesse, finalmente, se reconciliar com o filho amado.